domingo, setembro 11, 2005

Fotogramas do país real - I

O olhar desviou-se, por momentos, do ecrã do computador para a Ritinha, emoldurada e sorridente, mesmo ali ao lado.
Com novo alento, matraqueou as teclas puídas por anos de ilusão do dever cumprido.
Àquela hora, a maioria das famílias havia já jantado, pais, mães, avós, beijavam já os seus filhos, contavam-lhes uma história, cantavam-lhes uma cantiguinha de nanar.
Levantou a cabeça, o olhar perdido no branco sujo da parede em frente, ouviu o silêncio do vento e da chuva que retinia de quando em vez nos vidros da janela.
Sentiu um arrepio de frio e, à mingua de outra fonte, procurou o calor da escalfeta esfarrapada.
Sentiu uma súbita vontade de abraçar a Ritinha, e o Rodolfo.
Mas algo a compelia a matraquear o teclado, porque o dia seguinte é sempre menor do que o anterior.
Quando a última tecla remeteu o computador ao silêncio, levantou-se.
Pegou no processo e colocou-o no cimo da pilha, em cima da cadeira, junto à secretária.
Ajeitou a beca no cabide, desligou a escalfeta, apagou a luz e saiu, fechando a porta atrás de si, levando às costas o peso dos três mil processos que tinha pendentes.
Fechou a porta do carro e ligou a rádio.
O jornalista referia um político qualquer que afirmava a culpa dos juízes pelo estado da justiça, ao pretender acabar com os atrasos processuais diminuindo as férias judiciais...
Sentiu-se verdadeiramente exausta. E vexada.
E por entre o fragor da chuva e o silvar do vento, apenas conseguiu murmurar: - "Ritinha, Rodolfo... meus queridos... perdoem-me".

14 comentários:

Anónimo disse...

Pois é, quantas ritinhas e rodolfos há por esse país fora ?
Chegou a altura de dizer BASTA!
Escravatura judicial, NUNCA MAIS!!!

Sónia Sousa Pereira disse...

Caro Xavier,

Compreendo os dramas familiares das magistradas deste país (se compreendo!), mas... quem os não tem?

E o que dizer de quem é despedida pelo simples facto de estar grávida?

Ou de quem, como eu, por não ter direito a licença de maternidade à data (era estagiária e não descontava para lado algum) que com as "crias" com apenas um mês de idade, vai de regressar aos tribunais com uma bomba de tirar leite por companhia?

A "sua" magistrada há-de ter gozado mais uns tempinhos, não?

Estes dramas não são exclusivos da magistratura, são gerais numa sociedade muito mal resolvida consigo própria.

Olhamos para o lado e vislumbramos o relativismo... há sempre pior!

SSP

(perdoe-me o desabafo..)

Sónia Sousa Pereira disse...

Cara Magnolia,

Eu percebi a mensagem do Xavier e preocupa-me, também a mim, os ataques que têm vindo a ser feitos a essa e outras classes profissionais do nosso país.

Também eu, como profissional, sofro na "pele" os disparates legislativos que por aí andam.

Pareceu-me apenas é que o exemplo não foi o melhor, precisamente porque se toca no que temos de mais precioso - os filhos.

Nutro um profundo respeito pela magistratura até porque me julgo absolutamente incapaz de tão exigente profissão e porque dei os primeiros passos na profissão de advogada acompanhada por um juiz de carreira.

Tenho-a como um dos pilares da nossa estrutura social, mas será que os próprios magistrados têm noção do seu próprio papel?

SSP

xavier ieri disse...

Olá Sónia,
I.
Convido-a, se assim entender, a reformular a pergunta que deixou no seu comentário e dizer por palavras ditas aquilo que falta.

II.
O exemplo que dei no pequeno conto (putativo conto, entenda-se)não é uma atitude de defesa escudada nos filhos. Não!
É uma situação corriqueira, banal entre os magistrados portugeses, especialmente os de 1ª instância.
É uma situação profissional de demasiada exigência pessoal e sobreposição do sentido do dever ao sentido de familia.
É preterir sistematicamente a família em favor, não da profissão, mas da justiça, de efectivamente fazer justiça em tempo útil.
É preterir também o bem-estar pessoal em favor de uma causa, mais do que de uma profissão.

III.
O mesmo se passará com outras profissões, certamente. Mas desses hão-de cuidar os respectivos interessados.

IV.
Penso que não colhe o argumento da generalização dos problemas para irrelevar problemas de um específico sector: "Compreendo os dramas... mas quem os não tem"?
Cara Sónia, já deve ter percebido o quanto a estimo, mesmo sem a conhecer pessoalmente. Todavia, permita-me que lhe diga: O problema de uma pessoa, de uma classe profissional, de um grupo, é um problema de todos; deve ser, tem de ser, um problema de todos.
Só assim faz sentido a vida em sociedade.
Pretender que um problema alheio não é um meu problema é negar a própria vivência societária.
Pois para que outra coisa o Homem se organizou em sociedades complexas como as que conhecemos actualmente?
V.
Isso leva-nos a outra questão: Às fortes clivagens sociais que foram introduzidas por este Governo, lançando uns contra os outros, amigo contra amigo, vizinho contra vizinho; Basta, para tanto, que um seja funcionário público e outro privado; que um seja juiz e outro cidadão anónimop; que um seja militar e outro civil, etc, etc.
Este Governo fez aquilo que é uma profunda ofensa à civilização e à civilidade: Introduziu, pela sua prória mão, factores de divisão e clivagem profunda entre os cidadãos.
E quando se precisava de união para fazer reformas e poder-se verdadeiramente arrancar com uma nova fase de crescimento para o país, fez-se, em vez disso, o contrário: Tomaram-se medidas anémicas, mal estruturadas, mal fundamentadas, soluções para problemas mal estudados ou até inexistentes, produzindo um estado civil caótico.
Com os portugueses profundamente divididos e com o descrédito que foi lançado sobre sectores importantes da nossa vida (justiça, defesa, saúde e educação), que são os pilares de qualquer democracia digna desse nome, resta-nos denunciar e utilizar os instrumentos do Estado de Direito e da Democracia para modificar este estado de coisas.
Um desses instrumentos é também este.
Cumprimentos
:)

Anónimo disse...

Pelos vistos a Sónia conhece os magistrados apenas da sala de audiência.
Já agora talvez queira expicar porque é que deu os primeiros passos na profissão de advogada acompanhada por um "juiz de carreira" (Haverá aqui alguma imprecisão porque os juízes não dão estágio a advogados).
Ou será que este "juiz de carreira" não tinha exclusividade de funções como todos os outros?

Sónia Sousa Pereira disse...

Bom, do menos para o mais:

Sr. Anónimo,

Efectivamente, conheço poucos magistrados pessoalmente (e felizmente esses dão uma excelente amostra da classe).

Pena é que este sistema não promova um relacionamento mais estreito entre os diversos "operários" judiciários.

Às claras!

Ao invés da desmaterialização, a humanização.

Quanto às suas interrogações e atendendo à forma como foram levantadas... é um facto, não tenho de lhe dar explicações.

Só para o provocar um bocadinho, até lhe digo mais: Juiz Conselheiro.

Caríssimo Xavier ;-)

Parece que foi o único que percebeu a minha reacção e que ela vem no seguimento da questão "escondida" (ou a tal "tricky") da Greve.

Entendamo-nos:

Sou absolutamente solidária com a causa da magistratura face às desditas governamentais.

Até porque entendo que não é a classe que está em causa, mas sim a organização do Estado.

Mas também é um facto que o que passa para a opinião pública(aqueles de onde deriva a legitimidade do poder judicial) é precisamente a questão das regalias (daí a minha reacção)...

E o que é que o povo pensa?

"Olha-me estes, eu aqui desempregada, sozinha, mãe de 16 filhos, 3 deficientes, 2 toxicodependentes..." (e por aí fora).

E aqui quebra-se o vínculo legitimador, como está mais do que quebrado (há tanto tempo que se calhar ainda não tinha nascido...) com o poder político e executivo.

Percebe o meu ponto de vista?

Saberá já que sou sensível à questão da maternidade e não é isso que está aqui em causa... é tão só o discurso e as formas de reacção.

Bom... e parece que me mudei para aqui (não escrevo no meu e descarrego aqui, desculpe Xavier!).

Saberá também que lhe retribuo a estima.

Bem haja.

SSP

Anónimo disse...

Sra. Sónia
Como gosto de provoçações, é óbvio para quem conhece as coisas que o Juiz Conselheiro de que fala não trabalhava no Supremo mas sim num escritório de advogados, o que significa também que (á semelhança de outros) deixou a magistratura para abraçar a advocacia porque a achou certamente mais aliciante...
De todo modo, e revertendo ao post, acerca da vida pessoal, profissional, familiar dos magistrados falará melhor certamente quem vive a dita...
Cordiais saudações.

Sónia Sousa Pereira disse...

Caro Anónimo,

Por mim a questão está encerrada (e há por aí algumas incorrecções quando se refere ao meu caso... desconhecimento ;-)).

Mas não também, sem lhe retribuir as cordiais saudações.

Tivesse pedido com jeitinho e eu explicava (mais uma!).

SSP

Anónimo disse...

Cara Sónia
Assunto encerrado.
Para a próxima a ver se aprendo a pedir com mais jeitinho.
Renovo as cordiais saudações (sinceramente)

Anónimo disse...

Aposto que o dito juiz conselheiro, amiguinho da sónia, a trabalhar num escritório de advogados, como advogado, é tratado como sr conselheiro ...
Depois queixam-se coitadinhos.

Sónia Sousa Pereira disse...

Em relação a este último comentário... só um profundo desprezo.

Tivesse V. Exa. apenas um esgar da dignidade e sentido de Justiça que o Conselheiro que me deu estágio tem e concerteza não lhe sairia da boca para fora tanta asneirada.


SSP

Conservador disse...

Parabens Sónia Sousa Pereira por reconhecer. Magnolia disse tudo.

Sónia Sousa Pereira disse...

???

SSP

Sónia Sousa Pereira disse...

http://incursoes.blogspot.com/2005/09/sindicalismo-judicirio-e-amanh.html#comments

É disto que falo.

Subscrevo.

SSP