O olhar desviou-se, por momentos, do ecrã do computador para a Ritinha, emoldurada e sorridente, mesmo ali ao lado.
Com novo alento, matraqueou as teclas puídas por anos de ilusão do dever cumprido.
Àquela hora, a maioria das famílias havia já jantado, pais, mães, avós, beijavam já os seus filhos, contavam-lhes uma história, cantavam-lhes uma cantiguinha de nanar.
Levantou a cabeça, o olhar perdido no branco sujo da parede em frente, ouviu o silêncio do vento e da chuva que retinia de quando em vez nos vidros da janela.
Sentiu um arrepio de frio e, à mingua de outra fonte, procurou o calor da escalfeta esfarrapada.
Sentiu uma súbita vontade de abraçar a Ritinha, e o Rodolfo.
Mas algo a compelia a matraquear o teclado, porque o dia seguinte é sempre menor do que o anterior.
Quando a última tecla remeteu o computador ao silêncio, levantou-se.
Pegou no processo e colocou-o no cimo da pilha, em cima da cadeira, junto à secretária.
Ajeitou a beca no cabide, desligou a escalfeta, apagou a luz e saiu, fechando a porta atrás de si, levando às costas o peso dos três mil processos que tinha pendentes.
Fechou a porta do carro e ligou a rádio.
O jornalista referia um político qualquer que afirmava a culpa dos juízes pelo estado da justiça, ao pretender acabar com os atrasos processuais diminuindo as férias judiciais...
Sentiu-se verdadeiramente exausta. E vexada.
E por entre o fragor da chuva e o silvar do vento, apenas conseguiu murmurar: - "Ritinha, Rodolfo... meus queridos... perdoem-me".
14 comentários:
Pois é, quantas ritinhas e rodolfos há por esse país fora ?
Chegou a altura de dizer BASTA!
Escravatura judicial, NUNCA MAIS!!!
Caro Xavier,
Compreendo os dramas familiares das magistradas deste país (se compreendo!), mas... quem os não tem?
E o que dizer de quem é despedida pelo simples facto de estar grávida?
Ou de quem, como eu, por não ter direito a licença de maternidade à data (era estagiária e não descontava para lado algum) que com as "crias" com apenas um mês de idade, vai de regressar aos tribunais com uma bomba de tirar leite por companhia?
A "sua" magistrada há-de ter gozado mais uns tempinhos, não?
Estes dramas não são exclusivos da magistratura, são gerais numa sociedade muito mal resolvida consigo própria.
Olhamos para o lado e vislumbramos o relativismo... há sempre pior!
SSP
(perdoe-me o desabafo..)
Cara Magnolia,
Eu percebi a mensagem do Xavier e preocupa-me, também a mim, os ataques que têm vindo a ser feitos a essa e outras classes profissionais do nosso país.
Também eu, como profissional, sofro na "pele" os disparates legislativos que por aí andam.
Pareceu-me apenas é que o exemplo não foi o melhor, precisamente porque se toca no que temos de mais precioso - os filhos.
Nutro um profundo respeito pela magistratura até porque me julgo absolutamente incapaz de tão exigente profissão e porque dei os primeiros passos na profissão de advogada acompanhada por um juiz de carreira.
Tenho-a como um dos pilares da nossa estrutura social, mas será que os próprios magistrados têm noção do seu próprio papel?
SSP
Olá Sónia,
I.
Convido-a, se assim entender, a reformular a pergunta que deixou no seu comentário e dizer por palavras ditas aquilo que falta.
II.
O exemplo que dei no pequeno conto (putativo conto, entenda-se)não é uma atitude de defesa escudada nos filhos. Não!
É uma situação corriqueira, banal entre os magistrados portugeses, especialmente os de 1ª instância.
É uma situação profissional de demasiada exigência pessoal e sobreposição do sentido do dever ao sentido de familia.
É preterir sistematicamente a família em favor, não da profissão, mas da justiça, de efectivamente fazer justiça em tempo útil.
É preterir também o bem-estar pessoal em favor de uma causa, mais do que de uma profissão.
III.
O mesmo se passará com outras profissões, certamente. Mas desses hão-de cuidar os respectivos interessados.
IV.
Penso que não colhe o argumento da generalização dos problemas para irrelevar problemas de um específico sector: "Compreendo os dramas... mas quem os não tem"?
Cara Sónia, já deve ter percebido o quanto a estimo, mesmo sem a conhecer pessoalmente. Todavia, permita-me que lhe diga: O problema de uma pessoa, de uma classe profissional, de um grupo, é um problema de todos; deve ser, tem de ser, um problema de todos.
Só assim faz sentido a vida em sociedade.
Pretender que um problema alheio não é um meu problema é negar a própria vivência societária.
Pois para que outra coisa o Homem se organizou em sociedades complexas como as que conhecemos actualmente?
V.
Isso leva-nos a outra questão: Às fortes clivagens sociais que foram introduzidas por este Governo, lançando uns contra os outros, amigo contra amigo, vizinho contra vizinho; Basta, para tanto, que um seja funcionário público e outro privado; que um seja juiz e outro cidadão anónimop; que um seja militar e outro civil, etc, etc.
Este Governo fez aquilo que é uma profunda ofensa à civilização e à civilidade: Introduziu, pela sua prória mão, factores de divisão e clivagem profunda entre os cidadãos.
E quando se precisava de união para fazer reformas e poder-se verdadeiramente arrancar com uma nova fase de crescimento para o país, fez-se, em vez disso, o contrário: Tomaram-se medidas anémicas, mal estruturadas, mal fundamentadas, soluções para problemas mal estudados ou até inexistentes, produzindo um estado civil caótico.
Com os portugueses profundamente divididos e com o descrédito que foi lançado sobre sectores importantes da nossa vida (justiça, defesa, saúde e educação), que são os pilares de qualquer democracia digna desse nome, resta-nos denunciar e utilizar os instrumentos do Estado de Direito e da Democracia para modificar este estado de coisas.
Um desses instrumentos é também este.
Cumprimentos
:)
Pelos vistos a Sónia conhece os magistrados apenas da sala de audiência.
Já agora talvez queira expicar porque é que deu os primeiros passos na profissão de advogada acompanhada por um "juiz de carreira" (Haverá aqui alguma imprecisão porque os juízes não dão estágio a advogados).
Ou será que este "juiz de carreira" não tinha exclusividade de funções como todos os outros?
Bom, do menos para o mais:
Sr. Anónimo,
Efectivamente, conheço poucos magistrados pessoalmente (e felizmente esses dão uma excelente amostra da classe).
Pena é que este sistema não promova um relacionamento mais estreito entre os diversos "operários" judiciários.
Às claras!
Ao invés da desmaterialização, a humanização.
Quanto às suas interrogações e atendendo à forma como foram levantadas... é um facto, não tenho de lhe dar explicações.
Só para o provocar um bocadinho, até lhe digo mais: Juiz Conselheiro.
Caríssimo Xavier ;-)
Parece que foi o único que percebeu a minha reacção e que ela vem no seguimento da questão "escondida" (ou a tal "tricky") da Greve.
Entendamo-nos:
Sou absolutamente solidária com a causa da magistratura face às desditas governamentais.
Até porque entendo que não é a classe que está em causa, mas sim a organização do Estado.
Mas também é um facto que o que passa para a opinião pública(aqueles de onde deriva a legitimidade do poder judicial) é precisamente a questão das regalias (daí a minha reacção)...
E o que é que o povo pensa?
"Olha-me estes, eu aqui desempregada, sozinha, mãe de 16 filhos, 3 deficientes, 2 toxicodependentes..." (e por aí fora).
E aqui quebra-se o vínculo legitimador, como está mais do que quebrado (há tanto tempo que se calhar ainda não tinha nascido...) com o poder político e executivo.
Percebe o meu ponto de vista?
Saberá já que sou sensível à questão da maternidade e não é isso que está aqui em causa... é tão só o discurso e as formas de reacção.
Bom... e parece que me mudei para aqui (não escrevo no meu e descarrego aqui, desculpe Xavier!).
Saberá também que lhe retribuo a estima.
Bem haja.
SSP
Sra. Sónia
Como gosto de provoçações, é óbvio para quem conhece as coisas que o Juiz Conselheiro de que fala não trabalhava no Supremo mas sim num escritório de advogados, o que significa também que (á semelhança de outros) deixou a magistratura para abraçar a advocacia porque a achou certamente mais aliciante...
De todo modo, e revertendo ao post, acerca da vida pessoal, profissional, familiar dos magistrados falará melhor certamente quem vive a dita...
Cordiais saudações.
Caro Anónimo,
Por mim a questão está encerrada (e há por aí algumas incorrecções quando se refere ao meu caso... desconhecimento ;-)).
Mas não também, sem lhe retribuir as cordiais saudações.
Tivesse pedido com jeitinho e eu explicava (mais uma!).
SSP
Cara Sónia
Assunto encerrado.
Para a próxima a ver se aprendo a pedir com mais jeitinho.
Renovo as cordiais saudações (sinceramente)
Aposto que o dito juiz conselheiro, amiguinho da sónia, a trabalhar num escritório de advogados, como advogado, é tratado como sr conselheiro ...
Depois queixam-se coitadinhos.
Em relação a este último comentário... só um profundo desprezo.
Tivesse V. Exa. apenas um esgar da dignidade e sentido de Justiça que o Conselheiro que me deu estágio tem e concerteza não lhe sairia da boca para fora tanta asneirada.
SSP
Parabens Sónia Sousa Pereira por reconhecer. Magnolia disse tudo.
???
SSP
http://incursoes.blogspot.com/2005/09/sindicalismo-judicirio-e-amanh.html#comments
É disto que falo.
Subscrevo.
SSP
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