quinta-feira, agosto 31, 2006

NOVA CORRIDA NOVA VIAGEM!

Das entranhas do cavalo de ferro já se sente o calor da fornalha.
E a minha cara a afoguear-se com o reavivar do coque.
Chego-lhe umas pazadas de carvão.
Ora toma lá, pançudo dum catano, aquece a malvada da caldeira que amanhã já marchas por esses tribunais afora, papando processos logo ao pequeno almoço!

Tuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii................

tchuk tchuk tchuk tchuk tchuk tchuk tchuk tchuk tchuk

Tuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...................

quarta-feira, agosto 23, 2006

FÉRIAS, MESMO MESMO FÉRIAS!!!*

- Ouve lá, sabes onde é que há férias mesmo férias; férias nhemmmnn... mesmo férias-férias?
Aquelas férias tão férias que tu olhas para elas e dizes "Epá estas férias são mesmo férias!"?
Férias que são tão férias que até chateia de tão férias que são?
Porque queres fazer férias e nem consegues deixar de as fazer porque são férias mesmo férias, as marotas?
Sabes onde é que as há?
SABES?

Mnistro da jestiça: - sei... (shuif, shuif...)

- Então, CALA-TE!!!!


(* matriz do Gato Fedorento sobre chamadas telefónicas grátis)

segunda-feira, agosto 21, 2006

FÉRIAS, MESMO FÉRIAS!

Nunca pensei poder vir a concluir isto:
- Que bem fez o Ministro da Justiça ao encurtar o período das férias judiciais de verão!
-Oh! Que ricas férias-férias!!!
- Keep it that way, Minister! Oh, please, please, please, PLEASE!

domingo, agosto 13, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA - V - AS MENINAS DO CALEMA

Vindo do Tamariz, contornava-se o paredão da baía e dava-se de caras com a Capitania do Porto.
O Lobito era, e é, uma cidade portuária, com a importância estratégica que lhe era conferida pelo terminal da linha do caminho de ferro de Benguela.
A Capitania não ficava longe da peixaria do Zé Maria, junto da qual todos nós morávamos.
Em frente da Capitania havia uma velha vivenda de estilo colonial, com uma cave de janelas ao nível do chão, por debaixo da varanda larga que a circundava, e um telhado de telha cerâmica, vermelha.
Os pilaretes, finos, que suportavam o telheiro da varanda, bem como o varandim, eram pintados de branco.
Era ali que moravam as "putas" do Calema (como eram conhecidas em certos meios).
Era a sua casa, reservada apenas a habitação.
O Calema era uma boîte, um club nocturno, na zona das docas, com espectáculo de strip tease e afins que, para além dos néons vermelhos, costumava anunciar os seus espectáculos com cartazes de cores brilhantes colocados de um e outro lado da porta.
Isto sabiamos nós. E nada mais.

Em certas manhãs víamos chegar as moças, depois do trabalho nocturno, lindas, mulheres pintadas, altas, de pernas altas !
Vinham numa carrinha, um furgão VW conduzido por um mulato mal encarado.
Ali sentados no friso do muro da Capitania era como se não fosse nada connosco, mas a verdade é que ninguém perdia pitada!
Trabalhavam por turnos, pelo que havia sempre gente naquela casa durante o dia como também durante a noite.
Acicatados pelas hormonas dos 12 anos, os risos que à noite se furtavam pelas janelas da vivenda povoavam a nossa imaginação e transformavam-se em chamamentos irresistíveis.
A curiosidade tomou conta de nós, de cada um do nosso grupo. Dos rapazes, claro. A participação das meninas do grupo era confinada a certas andanças. Noutras, como esta, eram "coisas de homens"!

- Ouvi dizer que elas tomam banho, nuas, ali na cave... - Confidenciou o Nicolau com os olhitos a brilhar.
- Claro que tomam banho nuas! Tomavam banho vestidas?
- Não é isso, pá! é que tão mesmo nuas ali, tão ali! Nuas!
- Nuas nuinhas?
- Nuinhas! Juro!
- Chiiiçaaa!!
- Ena pá!!!
- E são lindas! Com mamocas e tudo, ali... eu já vi!
- Mentiroso!
- Viste nada! Viste onde? Hem? Onde? Onde??
- Vi, vi juro que vi... uma vez espreitei pela janela e vi uma a vestir-se... tava nua... a vestir-se... e eu vi!
- Oh! Ena pá!
- Pela Janela? - Interessou-se o Alexandre.
- Yah! Pela Janela! A janela da cave, ao pé da bananeira...
O silêncio denunciava a velocidade da cabeça de cada um: A cem à hora.
- A que horas é que chegam as do dia?
- Chegam já de noite... praí às... 10 horas...
- ... e vão tomar banho...
- ... e já não há sol...
- Pois não, mas há dois candeeiros na rua mesmo em frente da casa... não dá, pá, vê-se tudo...
- Vê-se tudo, nada! Estão lá as bananeiras e podemos esconder-nos lá.
- Tá bem, tá bem, mas o problema é chegar até lá... como é que se atravessa o jardim sem ninguém nos ver??
- Já sei!
- Já sabes? O quê?
- Já sei como entrar!

O plano era bom. Iniciava-se com o suborno - um belo osso - do boxer da casa da pitanga, a passagem pelo quintal da Srª Felismina - cuidado com as galinhas e com o ouvido da senhora, que era fino! - e continuava pelo muro velho, um muro de adobe que terminava na parede mais recuada da casa do Calema.
Rastejar até às bananeiras, em frente das janelas da cave não oferecia qualquer problema.
Se bem o pensámos, melhor o executámos!
Às 10 da noite, a cambada do costume - eu, o Alexandre, o Nicolau, o Fanadinho, o Alforreca, o Tito, o Gramaxo - esgueirámo-nos pelos muros e pelos quintais, descemos ao jardim da casa do Calema e instalámo-nos entre as bananeiras.
Na casa, rumores vagos. As janelas da cave, rasgadas, não se mostravam iluminadas.
- Viemos cedo de mais...
- Sssshhhh... tão a chegar, tão a chegar!
Ouvia-se a algaraviada que as moças faziam lá à frente, acabadas de sair da carrinha, os risinhos, bater de portas, conversas...
Chegámo-nos à frente e espreitámos pela janela. Nada!
- Vamos esperar, malta! É aqui que elas tomam banho. Eu sei que é aqui! Afirmava peremptório o Nicolau.
Os corações batiam desalmadamente no peito.
Era demasiada excitação. Pelo proibido, pelo clandestino, pela intromissão desautorizada, pelo medo, pela expectativa dos corpos nús...
Nisto, alguém acendeu a luz e a janela ficou toda iluminada.
A metade inferior da janela era de vidro fosco, mas a metade superior era de vidro transparente. Sem cortinas.
Era autêntico cinescope 70mm.
Deitados na relva, pois as janelas estavam ao nível do chão, bastava levantar a cabeça acima do vidro fosco.
Lá vinham elas!
- Olha ! Olha!
- Ssssshhhhh pá pouco barulho... ena pá!
- Chiiiiii...

- Ora, o que é que se passa aqui?
O nosso coração, de cada um de nós, deu um pulo de aflição!
- Não têm vergonha? O que se passa aqui?! Hem?
Ficámos de costas, apoiados nos cotovelos, com ar aparvalhado a olhar para... o Padre Júlio!
- Padre Júlio!?!!
- Que vergonha!! Rapazes educados, de boas famílias, ai, ai, ai ,ai ,ai!!
- Padre Júlio... Não foi nada... não é nada...
- É que nós ouvimos um barulho...
- E o gato correu para aqui e nós...
- Chega de mentiras! Amanhã de manhã quero-os a todos na sacristia! Todos! Ouviram?
- Sim senhor... sim senhor Padre Júlio...
Cabisbaixos, saimos dali a correr...
Mas uma coisa é certa: Aquelas mulheraças estiveram mesmo ali à nossa frente. Nuínhas de todo!
YYuuuupppiiiiiiiiii! Ríamos nós em correria pela rua baixo...

Na manhã seguinte lá fomos à sacristia.
Trinta Avé-Marias? Trinta Padre-Nossos?
Apresentámo-nos sem grandes apreensões, pois o Padre Júlio era cá dos nossos, quer dizer, não era do tipo "rato-de-sacristia-moralista-da-treta". Era alguém em quem sempre confiáramos, em quem se podia confiar.

Era um amigo.
- Vamos lá encontrar uma saída airosa, rapazes!
O Padre Júlio tinha uma incumbência para todos nós, já se adivinhava.
- Rapazes, é coisa que não se faz, espreitar a intimidade dos outros. Foi um erro. E os erros pagam-se! E o vosso vai ser pago com trabalho.
- Trabalho!? Oh, não! - Todos nos lamentámos, vendo as férias grandes a voar...
- Trabalho! Ora digam-me lá: Afinal, o que foram lá fazer?
- Bem, nós fomos... - Hesitou o Nicolau - fomos... ver as meninas...
- Foram ver as meninas!? Muito bem! Sabem quem são aquelas meninas? O que fazem?
- Sim, trabalham no Calema... são... são... trabalham no Calema... - embatucou o Gramaxo.
- É verdade. Trabalham. No Calema. Eu não posso aprovar o trabalho... que elas fazem no Calema. Mas continuam a ser pessoas. Como tu, ou tu, ou tu, ou eu, pessoas como nós! Merecem não só o nosso respeito como também a nossa solidariedade.
Que palavrão! O Padre Júlio começava a falar caro. Nós, em sentido!
- Aquelas meninas - continuou - são quase todas analfabetas.
- Analfabetas? - Estranhou o Alforreca.
- Analfabetas Manelinho, analfabetas! Se calhar é por isso que trabalham... no Calema, percebes?
- Não sabem nada? Nem ler nem escrever? - Perguntei.
- Algumas sabem assinar; 'fazem' o nome mal e porcamente e nada mais.
- Coitadas - Condoeu-se o Fanadinho.
- Pois é, Por isso, pensei num trabalho para vós. Tenho a certeza de que vai agradar-vos, rapazes!
- O que é? O que é?
- Vão dar aulas às meninas do Calema! Vão ensiná-las a ler e a escrever. Aqui no salão paroquial.
Entreolhámo-nos, algo confusos.
Nós, pingentes de 12 e 13 anos? Dar aulas a adultos?
Todavia, sempre eram as meninas do Calema!
- Já falei com elas. Eu acompanho-vos no início de cada aula e depois vocês continuam a tarefa. Dos vossos pais trato eu. Está bem?
A estupefação inicial havia passado e dera lugar a uma euforia ingénua tanto quanto maliciosa, mitigada por um sentimento de responsabilidade crescente à medida que a tarefa nos ía tomando conta da razão.

O Padre Júlio tinha em curso projectos sociais, também de alfabetização, e numa sociedade de mente aberta como aquela as meninas do Calema encaixavam ali perfeitamente, sem rebuços hipócritas nem levantamento de beatas histéricas.
Saímos dali de peito inchado, orgulhosos, agradecidos pela confiança que o Padre Júlio em nós havia depositado.


Pois foi um verão memorável!
As meninas do Calema não só eram alunas aplicadas como também eram grandes compinchas, com a meninice à flor da pele, ombro a ombro com a nossa própria, capazes de carinho e afectos fraternais, quando não mesmo maternais, que ainda hoje relembro com grande emoção.

Que grandes férias!

Coisa que nunca percebemos, e ainda hoje está por saber, era o que fazia ali o Padre Júlio, naquela noite...

sexta-feira, agosto 11, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA - IV

A peixaria do Zé Maria ficava mesmo em frente.
Chamavam-lhe peixaria, mas na verdade era uma fabriqueta de transformação e exportação de marisco e pescado variado.
Tinha um cais próprio, onde atracavam as traineiras e que nos servia de parque infantil, piscina, reino dos piratas, fortaleza, eu sei lá...
O Zé Maria era um porreiraço, muito amigo do meu pai, e de quando em vez lá vinha uma santola ou mesmo uma lagosta acabadinha de cozer, para a miudagem.
O cais ficava na zona da baía, águas calmas, perturbadas apenas pela passagem dos navios, das lanchas ou das traineiras.
Um bote ou uma chata não tinham segredos para nós.
Qualquer um de nós gingava uma chata com a destreza de um autêntico marinheiro.
Sabiamos fazer um nó de porco para a amarração e até mesmo um lais-de-guia, nó nada fácil de alcançar na perfeição.
Mas as brincadeiras com os barquitos alheios não preenchia já a nossa imaginação.
Verdadeiros piratas têm verdadeiros navios-pirata sob o seu domínio!
Verdadeiros piratas têm o seu próprio "navio".
Sentámo-nos em discussão.
A questão era: Onde desencantar um "navio" pirata?
Dos bolsos e dos mealheiros sairam as moeditas, mas todas juntas não chegavam para três braças de cabo, quanto mais para um botezito, mesmo roto...
- E se construíssemos um "navio"?
O Alexandre saltou como se tivesse uma mola tensa debaixo do traseiro!
- É isso!!! É isso!!! Vamos fazer um barco!!!
- Um navio, pá, diz-se um navio - insistiu o Nicolau - os piratas não têm barcos, têm navios, já viste se tivessem barcos ninguém os respeitava, por isso é navi...
- Pôrra! Tá bem, tá bem... vamos fazer um navio!
- E como, com quê?
Olhámos ali para o lado e a pilha de caixas de madeira riu-se para nós.
Levantámo-nos e cercámos o monte de caixas, olhando-as pela primeira vez!
Ora, acontece que o Zé Maria exportava o seu pescado em caixas de madeira, caixas essas que eram montadas ali na carpintaria da fabriqueta.
A amizade entre o Zé Maria e o meu pai valeu-me a incumbência da nobre tarefa de tentar reverter para a nossa causa uma esperada nega no pedido de utilização da madeira das caixas. Da madeira nova, evidentemente.
Mas o Zé Maria era uma alma única, certamente tivera uma infância feliz e creio ter vislumbrado uma enorme pena por ter crescido e não poder agora acompanhar-nos na criação do navio pirata, quando me respondeu:
- Um navio pirata!? Ah ah ah ah!! Pago pra ver!!! Que grande idéia! Ok, rapaziada. Vão ter com o Muxico e ele que vos dê as tábuas e os pregos e o que for preciso. Quero ver esse navio! Ah ah ah ah...
Do Muxico obtivemos não só os materiais, as ferramentas, como também os rudimentos da fabricação da coisa.
Era preciso uma quilha, fazer um cavername e depois recobrir tudo com as tábuas.
Utilizamos os fundos do quintal, uma zona reservada, pois não queríamos interferências de outras engenharias.
Aquilo foi coisa para uma semana.
Uma semana febril de corta e prega e arranca e torna a pregar e torna a cortar," é assim", "não, não, é assado", "segura aqui", "vai agora! Força!"...
A coisa começou a tomar forma e já parecia um botezito, de fundo achatado.
Mas não flutuava ainda. Era preciso calafetá-lo e impermeabilizá-lo.
Da necessidade ao Macué foi um passo.
O Macué era o encarregado da manutenção das traineiras e foi ele que nos deu uma lata de pez e um rolo de estopa de linho.
O know how tinhamos nós, pelas horas de obervação dos artífices na calafetação das embarcações.
Vá de calafetar.
O trabalho ficou pronto quando o pez se acabou, metade dele agarrado às nossas pernas, aos calções, ao cabelo (tramado tirar aquilo do cabelo, "agora só com azeite", dizia a minha mãe tentando perceber onde terminava o meu cabelo preto retinto e começava o pez da mesma cor).
Faltava apenas o toque final: Uma pintura. Um "navio" de piratas que se preze é pintado a preceito.
Na secção das tintas o Mané convenceu-nos de que aquela tinta de cor grená era a melhor.
Torcemos um pouco o nariz... grená... mas era a melhor! e um pirata deve ter o melhor.
O barquito lá ficou todo pintado de grená. Bonito o danado!
Um velho remo foi transformado num belo mastro.
Já os sacos que serviam ao transporte do milho forneceram o pano para a vela latina, toda cosidinha à mão com agulha albardeira.
Comprámos uma pequena bandeira nacional, para a içar no mastro do "navio".
O toque final era a bandeira dos piratas. Foi desenhada e pintada a preceito, caveira e ossos cruzados, brancos sobre fundo negro. Um espanto!

Para evitar aflições e vexamos inúteis, no silêncio de uma bela madrugada de noite mal dormida pela espera, suámos as estopinhas mas metemos o malvado à água.
Flutuava.
Direitinho!

Aí pelas 9 da manhã estava eu, o Nicolau e o Alexandre a navegar a pleno pano, a não mais de 200 metros do cais.
O Fanadinho, o Alforreca, o Tito, o Gramaxo, a Lolita e a Inês (sim, sim, havia meninas, pois então!) estavam no cais, à espera de vez. Sim, porque o "navio" era de calado pequeno e mais de três piratas a bordo... afundavam-no!

Nisto, vem de lá o Zé Maria pelo cais, a gesticular, a gesticular...
A rapaziada à sua volta pulava, gritava, apontava... e nós espantados!
Não conseguíamos ouvir nada do que gritavam.
O Zé Maria gesticulava, fazendo-nos sinal para atracar, para regressar ao cais.
A bombordo, passou uma lancha e o mestre apitou, veio à amurada e também nos gritou algo que se perdeu no barulho do motor, apontando o nosso "veleiro".
Uma inquiteção tomou conta de nós.
O Zé Maria, no cais, continuava a chamar-nos a terra, ao cais.
- Nicolau! - era o Nicolau que ía ao leme - mete ao cais que alguma coisa não está bem...
- Fogo pá! O que será?!
A sensação de felicidade de navegar, de flutuar naquela casca de noz, feita pelas nossas mãos, deu lugar à apreensão.
Metemos direitinho ao cais, o "navio" a todo o pano, impecável, rasgando a água azul com aquela sua cor grená, orgulhosa, presente, personalizada.
À medida que nos aproximávamos a malta fazia uma algazarra tal que não conseguiamos ouvir o Zé Maria.
- Encosta, encosta! Olha o cabo!
Passado o cabo, preso o "navio", subimos ao cais pelas escaditas carcomidas e demos de caras com o Zé Maria.
- Ah! meus malandros...
- O que foi? O que foi? Sô Zé Maria, nós não...
- Ah! Cambada de malandros!!! Ih ih ih ih - Ria-se ele e nós sem percebermos patavina...
- Oh meus malandros, querem ir todos presos?!
- Mas nós não fizemos nada, nós...

- Então vocês não sabem que a PIDE anda por aí? que está em todo o lado?
- PIDE?!
- Chiiuu... shshsh... baixinho... a PIDE , sim.
- Mas nós não fizemos nada...
- Ah ah ah ah ih ihih - ria-se ele entre complacente e zangado e nós sem nada perceber.
- Olhem, para a vossa bandeira. Olhem!
- O que é que tem?
- A bandeira nacional, rapazes, a bandeira nacional!
- É novinha em folha, foi o Nicolau que a foi comprar e tudo...
- Pois é... mas está de pernas para o ar!!! De pernas para o ar, caraças!!!
- (!!!)
- Se a PIDE vê a bandeira de pernas para o ar vamos todos presos! E fecham-me a peixaria, rapazes!

(Este pequeno conto dedico-o ao meu amigo Alexandre, onde quer que ele se encontre; amigo que eu, desde então, não mais voltei a ver)

quarta-feira, agosto 09, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA - III

Depois da escola, era sagrado: Ir à fruta!
Ela era mangas, pitangas, goiabas, anonas, fruta-pinha, papaia, mamão, nochas, maboques, mirangolos...
Naquele dia haviamos combinado ir à fruta-pinha, uma espécie de anona, de casca mais rugosa e sabor intenso.
Sabiamos onde a encontrar.
Havia que subir o rio, pela margem já que era verão e o caudal, grosso, não permitia veleidades.
Mas, para pernas de 9 anos, isso não era problema.
Fui eu, o Chinvoco, o Massusse e o Piruleta.

Descalços, calções e tronco nú como impunha o supremo gozo da vida simples, das vidas simples. "Cuidado com as cobras!", era o medo maior!
Claro que os varanos faziam a sua aparição, mas aquele arremedo de jacaré "kandengue" não impressionava ninguém.
Fugia a quatro patas com dois berros e umas pedradas.
O calor era insuportável naquele dia.
Pela sombra das mulembas, lá fomos de ideia fisgada na fruta-pinha.
Nem os mirangolos nos detiveram e olhem que já os havia maduros.
A água bebia-se nos remansos do rio, ali onde ela parecia brotar da terra, límpida e fresca.
Já se avistavam as anoneiras.
O Chinvoco era o mais velho e mais experiente, "Ispera aqui, pá, qui vô vere". E foi.
Ficámos. Em silêncio.
Entretanto, fomos procurando as pedras mais indicadas à nobre tarefa da guerra da fruta-pinha. Cada um enfiou nos bolsos dos calções tantas quantas lá cabiam.
Fundamental era também um pau, um bom pau, verde, que não se partisse logo à primeira cacetada no chão.
"Pôra, pá, sêrá qui os gajo tão lá?" afligia-se o Massusse espreitando a chegada do Chinvoco.

"Os gajo tão lá, pá!".
E o Chinvoco traçou logo ali a táctica de assalto e controle do território.
"Tu vais no tambor".
O tambor era uma velha árvore tombada, oca do caruncho, peça fundamental na guerra que se avizinhava.
"Piruleta, tu ficas anqui e anqui que ninguém passa, pá!".
"Massusse, vais na borda do rio mas não passa pra cima. Pra cima é onde os gajo vão sair, pá!".
"Eu vou por anqui e quando grito todos avança!"
Com as missões definidas, cada um de nós avançou lenta e cuidadosamente.
Instalei-me no tambor, o pau a jeito, e esperei o grito do Chinvoco.

Ouvia-se a restolhada que os gajos faziam, os seus gritinhos, a sua chiadeira.
Pé-ante-pé, o Chinvoco aproximou-se.
Houve um silêncio súbito. Os gajos perceberam!
"ATACAAAAA!!!!" Era o Chinvoco no comando!
O tambor urrava, debaixo da malha de porrada que eu lhe afinfava.
Numa chinfrineira infernal, os paus batiam no chão e na folhagem com toda a força, a gritaria ombreava com o barulho da água em queda nos rochedos ali ao lado.
Os macacos, aos guinchos, fugiam em debandada geral.
Depois, os mais afoitos paravam, regressavam e, raios!, eram atiradores exímios!
Pedras, paus, fruta, tudo era utilizado como munição.
Mas nós estávamos precavidos: Os bolsos cheios de pedras eram paióis a debitar munições e a pedrada fervia em direcção à macacada.
O toque final, que os levava para lá do rio, era uma correria, todos em conjunto, como se de um só corpo se tratasse, de braços erguidos armados de varapaus, e uma gritaria medonha qual dragão doido , furibundo, ali parido do nada para assombrar as pobres criaturas parentais.

Depois era a partilha da vitória, uma redundância empolada, uma recreação do vivido, tudo numa algaraviada de risos e cacofonias, de encenações miméticas, numa comunhão de vida e vivência.

Liberto o pomar, havia que tomar conta do reino.
Para não haver dúvidas, cada um ficava com a sua "despensa" de fruta-pinha.
Depois, era comer até mais não.

Que bem sabia uma fruta assim conquistada!

segunda-feira, agosto 07, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA - II

É Domingo e o sol já vai alto.
No Verão é importante começar cedo.
Procuro a fisga, que serve apenas para apontar aos cacos de resina e nunca aos pássaros.
Tenho inúmeras coisas para fazer.
Meto pelo carreiro em direcção ao vale, atravesso o riacho.
Cantam rouxinóis e cigarras.
Um gaio espantado grasna, arrastando no coro um melro sonolento.
Atravesso a seara de centeio, com cuidado, "não se pisa o pão".

Os caminhos das cabras levam-me ao sopé da serra.
É hora de subir.
Os pés, empoeirados nas sandálias pequenitas, ameaçam cansaço e os calções deixam as pernas à mostra, um petisco para os tojos e os carrascos.

Ali está ele: O penedo amarelo!
Subo a penedia, a pulso, passo a passo, pedra a pedra.
Agarro-me ao alecrim e à esteva.
Procuro a velha fenda que me há-de levar aos ninhos das gralhas do penedo amarelo.
Num derradeiro esforço, ergo-me e espreito.
Dois enormes ninhos, quais feixes de lenha, mesmo à minha frente.
Os pais não estão. Estão os filhotes.
Ergo-me um pouco mais e fico ali a contemplar aqueles quatro seres, feios como um raio que os parta!
Mas cuja contemplação me fascina e me delicia.
É tudo o que desejo: Visitá-los de vez em quando e ver a sua evolução. Ver como ganham penas, como se vestem para o baile do primeiro voo.
Um belo dia chego lá e... são apenas memória.
Já são livres!
O grito da gralha devolve-me à realidade.
Ala, que se faz tarde!
Desço a penedia e percorro os carreiros do monte, que me conhecem muito bem.
Vou agora pelos cortiços, os que enxamearam.
Fico ali, perdido nas idas e nas vindas das abelhas, as que se apressam a sair e as que se afadigam a entrar, com as pernadas cheias de polen.
O odor de uma colmeia é absolutamente único: Cheira a óleos, a mel, a terra, cheira aos frutos doces, a todos os frutos da terra.
O sol subiu bastante, o calor aperta.
É altura de me refrescar.
Dirijo-me para o rio. Na verdade é um ribeiro, mas de água sempre fresca e com "nascentes" onde as mulheres enchem as cantaras que depois levam para a ceifa.
Por entre caniços e salgueiros, abro caminho até à água.
Meto lá os pés, com sandálias e tudo. Oh, como eles agradecem.
Caminhando pelo leito do ribeiro, onde ele é baixo, pela margem onde ele afunda, procuro a pequena represa, ao fundo do milharal do Ti' Zé Barraca.
Subo ao milharal, enfio-me pelas regueiras do milho, que faz dois ou três de mim, e lá à frente viro à direita.
Sei que é por ali. Procuro.
Ali está!
O mais belo abrunheiro da zona.
Carregadinho de abrunhos maduros.
Levanto a camisa e levo aos dentes uma das pontas, deixando uma espécie de bolsa suspensa.
Depois é só enchê-la de abrunhos sumarentos.
Volto ao ribeiro e coloco os abrunhos dentro da água fresca.
Dispo-me e enfio-me dentro de água também.
E ali fico.

Primeiro visitam-se os amigos.
A loca grande, dos barbos, está cheia.
Sei onde moram as rãs e deixo-as em paz para que me presenteiem com o seu coaxar pachorrento.
Mergulho, dou umas braçadas e de quando em vez vão uns abrunhos.
Umas braçadas, uma barrigada de água fresca e uns abrunhos!

As rãs coaxam e há um passarito em doce chilreio, a coberto da sombra verde e fresca.
Que bela é a vida!

sábado, agosto 05, 2006

DIÁLOGOS DE VERÃO - A MÃO INVISÍVEL

- Venham! Depressa! Depressa!
- Quem é? Quem grita?
- É o Tonito da Felismina... vem prali a gritar o danado...
- Corram! Depressa! Depressa!
- O que foi rapaz? Que gritaria é essa? Inda o sol mal salevantou e já tu estás nisto...?
- Foi... foi...
- Respira, rapaz! Respira! Calma!
- Foi.. é o Bonifácio!
- O Bonifácio!? O que tem o Bonifácio?
- Tá morto!
- Helá! Tá morto?
- Mas ouve lá, meu menino, morto... morto? Mêmo morto?
- Morto morridinho... todo morto... coitado...
- Mas onde? Quando? Morto? Tás bom da cabeça?
- Tá no cemitério! Morto! Eu vi! Eu vi!
- No cemitário!? Morto!?
- Bem... naé mal alembrado... no cemitério... morto... naé mal alembrado, nan senhor...
- Morto? Quem?
- O Bonifácio! Tá morto! No cemitério!
- Ah! Coitadito... Como foi?
- Atão e já tá no cemitério?!
- Não, não...
- Diz lá Tonito, como foi que...
- Nan sei Ti Barnabé, mas quele tá morto, tá! Eu vi-o!
- Mas atão, no cemitério... mas adonde?
- No jazigo dos Ferreirinhas!
- Ohh!!
- Helás!!
- No jazigo... como? Lá dentro?
- Lá dentro, Ti ' Policarpo!
- Nem quero acreditar...
- É verdade! Juro! Eu vi-o! Mortinho de todo! Ca cara de boca aberta, os olhos arremelgados...
- Os olhos arremelgados...?
- Sim, cuma cara de medo... Cá pra mim, ele morreu de susto!
- De susto? Tu nan tás bom da cabeça, Tonito!
- Tou, tou! Juro! Morreu de susto! Juro! Só pode ser! Juro! Venham lá ver, venham lá ver...
- Pode lá ser, rapaz!
- Juro! Morreu de susto, com o sobretudo pregado ao caixão!
- Qu sobretudo pregado ao caixão?! Ai que tu nan dizes coisa com coisa, rapaz...
- Juro, ele tá caído assim a modos que em direcção à porta, com aquela cara de medo e o sobretudo pregado ao caixão!
- O Bonifácio é um moço valente... tem lá medo dos mortos!!
- Não é ele que costuma fazer apostas de ir à meia-noite ao cemitério e coisas assim?
- É ele mêmo!
- Atão e agora morre de susto no cemitério? Nah!
- Olha, olha, vem ali o primo dele, o Sabino!
- Bom dia!
- Bom dia, Sabino.
- Atão isto é um comício, logo de manhã ou quê?!
- Não... ó Sabino... ouve lá... tu tens visto o teu primo Bonifácio?
- Vi, sim senhor. Inda onte tive cuele ali na tasca do Pulquério.
- Tens a certeza?
- Atão nan tenho?! Inté fizemos uma aposta!
- Uma aposta? É mêmo dele!
- Pois foi, apostamos quele nan era capaz de ir pregar um prego no caixão do Ferreirinha, à meia-noite!

sexta-feira, agosto 04, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA

A rua sinuosa e estreita, varrida pelo vento e pela chuva, endemoninhados.
As casas baixas, de telha vã, caliça desmaiada onde a pedra nua espreita, são o resguardo da espera.
Da espera dos dias melhores, dos dias das sementeiras e das colheitas.
Agora, nesta invernia, acolhem os sonhos de olhar perdido nas chamas da lareira.
Vai ficando escuro. Anoitece cedo no Inverno.
"Vá! Todos para casa; direitinhos a casa" dissera a professora.
Percorro a rua sinuosa e estreita.
Não se avista vivalma.
O vento redemoinha, silva, empurra-me, e uma chuva miudinha, fria, bate-me na cara.
Sinto-me parte daquele momento, dos elementos da natureza, agreste, agreste como eu, forte como eu - "olha que te constipas!" - Qual quê! Forte como eu, ensopado até aos ossos, sem frio nem calor, mas de peito cheio de vida.
A sacola ao ombro, cheia de livro e de caderno, mais o lápis, a ardósia e a caneta-de-tinta-permanente. Para as provas.
A importância de ter 7 anos.
A importância de 'andar na escola'.

Percorro a rua deserta.
Ali a meio, a tabuleta da taberna gira nos seus gonzos e bate contra a parede ao ritmo da ventania.
Espreito.
O tecto baixo de madeira enegrecida, o chão de terra batida, os barris alinhados por detrás do balcão comprido.
Pendurada do tecto uma lanterna a petróleo, de luz amarelenta, dolente, sem brilho.
Como a alma daqueles corpos ali encostados a bebericar a aguardente da dormência, a aguardente do engano, a aguardente da esperança.
Olham-me. Como a um fenómeno deveras estranho.
"Vai para casa, rapaz, que o diabo anda à solta esta noite...".

quinta-feira, agosto 03, 2006

E DE REPENTE, TUDO É TÃO SIMPLES...

É um daqueles fins de tarde sem história.
O silêncio de um ventinho, suave, cheiroso, aromatizado pelos óleos das estevas e do alecrim, suados, não pelo esforço, mas pelo calor do dia.
A montanha murmura, naquele seu linguarejar dolente, despenteando as urzes e o rosmaninho pela mão de uma rajada mais forte.
Lá no alto, uma águia diverte-se surfando as ondas de vento.
Apesar da brisa, as cigarras ainda exercitam a sua veia trovadora.
Há um coelhito, atrevido, que vai pulando ali para os lados da macieira.
Esperto!
Com a brisa, as maçãs caem e ele... bem, ele faz um banquete.
E uma paz enorme, enorme, invade-me.
Quedo-me pela contemplação.
A contemplação da natureza, não da natureza bucólica, mas da natureza rude, física, biológica, mineral.
É a contemplação da matéria, do cosmos.
É a compreensão da comunhão atómica, dos mesmíssimos átomos de que tudo e todos são feitos.
É o sentimento de partilha.
É a profunda noção de pertença, de ser parte integrante do universo.