terça-feira, setembro 20, 2005

Da greve

I.
Poderiam escrevinhar-se dezenas de páginas sobre esta matéria, com as melhores justificações como também com as piores detracções.
Nada disso é novo.
Vejamos, no entanto, mais de perto.
Em primeira linha, a greve é um meio para conferir voz e força negociativa a quem está desprovido de outras estruturas que permitam um efectivo diálogo em termos paritários, como de resto impõe não só a lei (relativamente às estruturas associativas), como também uma inesperada alteração do contrato social estabelecido por via de um programa de governo devidamente sufragado e, sobretudo, o impõe o bom senso.
A greve acaba por ser encarada como o remédio contra o autismo, a inabilidade e a incompetência gestionária da contraparte, no caso o Governo.
Ora, os juízes estão de facto desprovidos de estruturas que, no seio dos órgãos de soberania, e especialmente no relacionamento com o Governo permitam um verdadeiro diálogo entre pares, no respeito pelas vocações constitucionais de cada um dos órgãos de soberania envolvidos.
Isto sem prejuízo das competências cometidas à Associação Sindical dos Juízes Portugueses, pois que não é de estruturas sindicais que agora falamos.
Tivessem os Tribunais as estruturas próprias de um órgão de soberania e todo este rocambolesco processo ofensivo não teria certamente lugar, sem prejuízo de serem tomadas as medidas que a boa governação impusesse, mas aí, certamente, com discussão prévia em sede própria como compete num país que certamente pretende avançar com todos, mas já não o conseguirá contra todos.
Certamente que medidas governamentais mais agressivas, se dialogadas previamente, com o envolvimento directo e participado dos que são por elas atingidos, seriam mais facilmente compreendidas, aceites e implementadas.
Com as pessoas, no respeito pela sua dignidade pessoal e institucional, e não contra as pessoas.
E isso é tão válido para os juízes como para os militares, as polícias ou quaisquer outros.
O total desrespeito e até desprezo pelos juízes, pela sua condição e pelo seu estatuto, não só na actuação contra eles, mas também pela arrogante postura governamental de os ignorar e, ultimamente, de tentar fazer deles bodes expiatórios junto da opinião pública, conduz apenas à radicalização de ambos os discursos.
II.
Há mais.
Em termos constitucionais, todos o sabem, os Tribunais encontram-se em absoluta paridade com os restantes órgãos de soberania.
Mas se é assim, do ponto de vista constitucional, já assim não é do ponto de vista legal.
E muito menos é assim, do ponto de vista material.
Basta ver, como já se disse em post’s anteriores, como a legislação é omissa na implementação de estruturas próprias de um órgão de soberania e, em seu lugar, como se acabou por gizar a actual estruturação dos Tribunais em total submissão ao Ministério da Justiça, ou melhor, ao Ministro da Justiça, como órgão do Governo.
Esta cultura está de tal maneira enraizada que, como bem refere o Dr. Joel Timóteo (in http://www.verbojuridico.blogspot.com/) “Estes equívocos são tantas vezes coadjuvados por negligência de juízes-presidentes e secretários judiciais de Tribunais que permitem que na correspondência (envelopes, ofícios, etc.) surja junto ao selo da república [próprio dos órgãos de soberania] a menção ao Ministério da Justiça, seguido da designação do Tribunal respectivo. Uma prática inadmissível e atentatória do princípio da separação dos poderes, conduzindo a que os cidadãos que não têm que conhecer princípios jurídicos, sejam confundidos”.
Em termos materiais, basta ver a actuação deste Governo, como também dos anteriores, em certos aspectos, para perceber que os juízes são tratados como se fossem meros funcionários de competências planas.
É, portanto, todo o sistema legal, à revelia do estatuto Constitucional, e toda a prática governativa que retira aos Tribunais, aos seus juízes, o seu efectivo carácter de órgão de soberania.
Daí a necessidade, sentida em tempos e em tempos implementada, de possuir uma estrutura associativa de pendor sindical que, à míngua das verdadeiras estruturas de soberania, pudessem pugnar pelos interesses dos juízes e da justiça.
Neste contexto, que é também um contexto histórico-político (em declínio neste momento, corroído pelas suas próprias incongruências e corruptelas intrínsecas), a situação foi sendo conduzida ao longo dos anos, com base na aceitação implícita deste estado de coisas, desta situação que, embora institucionalmente instalada, é subversiva dos valores constitucionais e violadora das normas constitucionais atinentes (artºs 202º e seguintes da CRP).
Em conclusão, o que actualmente acontece é uma anormalidade jurídica, para dizer o mínimo: A montante, ou seja, a nível constitucional prevê-se um órgão de soberania, os Tribunais, titulado por juízes, mas a jusante esse órgão de soberania, no plano legal e material, e o seu corpo de juízes é instituído como um apêndice do Ministério da Justiça, na sua dependência, com um estatuto cada vez menos de órgão de soberania e cada vez mais de funcionário público indiferenciado, assim como as respectivas estruturas complexas a que chamamos tribunal são instituídas como se de serviços do Ministério da Justiça se tratasse.
É este o mar encapelado que se enfrenta.
Ora, empurrados para este mar encapelado povoado de tubarões, face à ofensiva governamental numa tentativa de transformar os juízes em bodes expiatórios das mazelas do sistema, o que resta fazer?
Bem, há que navegar em tal mar.
E para nele navegar só é possível fazê-lo utilizando os navios disponíveis.
Compreende-se, pois, que, bem ou mal, se vislumbre a greve como um navio capaz de enfrentar o Adamastor.

1 comentário:

Anónimo disse...

No estado caótico e de disfunção em que se encontram os tribunais, quem vai notar que os camaradas juizes fizeram greve? E, em que consiste tal greve? Não ir ao tribunal, não despachar processos, adiar julgamentos? Mas isto é o que acontece há anos e não lhe chamam greve.
Estamos definitivamente no país dos cómicos.