domingo, agosto 13, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA - V - AS MENINAS DO CALEMA

Vindo do Tamariz, contornava-se o paredão da baía e dava-se de caras com a Capitania do Porto.
O Lobito era, e é, uma cidade portuária, com a importância estratégica que lhe era conferida pelo terminal da linha do caminho de ferro de Benguela.
A Capitania não ficava longe da peixaria do Zé Maria, junto da qual todos nós morávamos.
Em frente da Capitania havia uma velha vivenda de estilo colonial, com uma cave de janelas ao nível do chão, por debaixo da varanda larga que a circundava, e um telhado de telha cerâmica, vermelha.
Os pilaretes, finos, que suportavam o telheiro da varanda, bem como o varandim, eram pintados de branco.
Era ali que moravam as "putas" do Calema (como eram conhecidas em certos meios).
Era a sua casa, reservada apenas a habitação.
O Calema era uma boîte, um club nocturno, na zona das docas, com espectáculo de strip tease e afins que, para além dos néons vermelhos, costumava anunciar os seus espectáculos com cartazes de cores brilhantes colocados de um e outro lado da porta.
Isto sabiamos nós. E nada mais.

Em certas manhãs víamos chegar as moças, depois do trabalho nocturno, lindas, mulheres pintadas, altas, de pernas altas !
Vinham numa carrinha, um furgão VW conduzido por um mulato mal encarado.
Ali sentados no friso do muro da Capitania era como se não fosse nada connosco, mas a verdade é que ninguém perdia pitada!
Trabalhavam por turnos, pelo que havia sempre gente naquela casa durante o dia como também durante a noite.
Acicatados pelas hormonas dos 12 anos, os risos que à noite se furtavam pelas janelas da vivenda povoavam a nossa imaginação e transformavam-se em chamamentos irresistíveis.
A curiosidade tomou conta de nós, de cada um do nosso grupo. Dos rapazes, claro. A participação das meninas do grupo era confinada a certas andanças. Noutras, como esta, eram "coisas de homens"!

- Ouvi dizer que elas tomam banho, nuas, ali na cave... - Confidenciou o Nicolau com os olhitos a brilhar.
- Claro que tomam banho nuas! Tomavam banho vestidas?
- Não é isso, pá! é que tão mesmo nuas ali, tão ali! Nuas!
- Nuas nuinhas?
- Nuinhas! Juro!
- Chiiiçaaa!!
- Ena pá!!!
- E são lindas! Com mamocas e tudo, ali... eu já vi!
- Mentiroso!
- Viste nada! Viste onde? Hem? Onde? Onde??
- Vi, vi juro que vi... uma vez espreitei pela janela e vi uma a vestir-se... tava nua... a vestir-se... e eu vi!
- Oh! Ena pá!
- Pela Janela? - Interessou-se o Alexandre.
- Yah! Pela Janela! A janela da cave, ao pé da bananeira...
O silêncio denunciava a velocidade da cabeça de cada um: A cem à hora.
- A que horas é que chegam as do dia?
- Chegam já de noite... praí às... 10 horas...
- ... e vão tomar banho...
- ... e já não há sol...
- Pois não, mas há dois candeeiros na rua mesmo em frente da casa... não dá, pá, vê-se tudo...
- Vê-se tudo, nada! Estão lá as bananeiras e podemos esconder-nos lá.
- Tá bem, tá bem, mas o problema é chegar até lá... como é que se atravessa o jardim sem ninguém nos ver??
- Já sei!
- Já sabes? O quê?
- Já sei como entrar!

O plano era bom. Iniciava-se com o suborno - um belo osso - do boxer da casa da pitanga, a passagem pelo quintal da Srª Felismina - cuidado com as galinhas e com o ouvido da senhora, que era fino! - e continuava pelo muro velho, um muro de adobe que terminava na parede mais recuada da casa do Calema.
Rastejar até às bananeiras, em frente das janelas da cave não oferecia qualquer problema.
Se bem o pensámos, melhor o executámos!
Às 10 da noite, a cambada do costume - eu, o Alexandre, o Nicolau, o Fanadinho, o Alforreca, o Tito, o Gramaxo - esgueirámo-nos pelos muros e pelos quintais, descemos ao jardim da casa do Calema e instalámo-nos entre as bananeiras.
Na casa, rumores vagos. As janelas da cave, rasgadas, não se mostravam iluminadas.
- Viemos cedo de mais...
- Sssshhhh... tão a chegar, tão a chegar!
Ouvia-se a algaraviada que as moças faziam lá à frente, acabadas de sair da carrinha, os risinhos, bater de portas, conversas...
Chegámo-nos à frente e espreitámos pela janela. Nada!
- Vamos esperar, malta! É aqui que elas tomam banho. Eu sei que é aqui! Afirmava peremptório o Nicolau.
Os corações batiam desalmadamente no peito.
Era demasiada excitação. Pelo proibido, pelo clandestino, pela intromissão desautorizada, pelo medo, pela expectativa dos corpos nús...
Nisto, alguém acendeu a luz e a janela ficou toda iluminada.
A metade inferior da janela era de vidro fosco, mas a metade superior era de vidro transparente. Sem cortinas.
Era autêntico cinescope 70mm.
Deitados na relva, pois as janelas estavam ao nível do chão, bastava levantar a cabeça acima do vidro fosco.
Lá vinham elas!
- Olha ! Olha!
- Ssssshhhhh pá pouco barulho... ena pá!
- Chiiiiii...

- Ora, o que é que se passa aqui?
O nosso coração, de cada um de nós, deu um pulo de aflição!
- Não têm vergonha? O que se passa aqui?! Hem?
Ficámos de costas, apoiados nos cotovelos, com ar aparvalhado a olhar para... o Padre Júlio!
- Padre Júlio!?!!
- Que vergonha!! Rapazes educados, de boas famílias, ai, ai, ai ,ai ,ai!!
- Padre Júlio... Não foi nada... não é nada...
- É que nós ouvimos um barulho...
- E o gato correu para aqui e nós...
- Chega de mentiras! Amanhã de manhã quero-os a todos na sacristia! Todos! Ouviram?
- Sim senhor... sim senhor Padre Júlio...
Cabisbaixos, saimos dali a correr...
Mas uma coisa é certa: Aquelas mulheraças estiveram mesmo ali à nossa frente. Nuínhas de todo!
YYuuuupppiiiiiiiiii! Ríamos nós em correria pela rua baixo...

Na manhã seguinte lá fomos à sacristia.
Trinta Avé-Marias? Trinta Padre-Nossos?
Apresentámo-nos sem grandes apreensões, pois o Padre Júlio era cá dos nossos, quer dizer, não era do tipo "rato-de-sacristia-moralista-da-treta". Era alguém em quem sempre confiáramos, em quem se podia confiar.

Era um amigo.
- Vamos lá encontrar uma saída airosa, rapazes!
O Padre Júlio tinha uma incumbência para todos nós, já se adivinhava.
- Rapazes, é coisa que não se faz, espreitar a intimidade dos outros. Foi um erro. E os erros pagam-se! E o vosso vai ser pago com trabalho.
- Trabalho!? Oh, não! - Todos nos lamentámos, vendo as férias grandes a voar...
- Trabalho! Ora digam-me lá: Afinal, o que foram lá fazer?
- Bem, nós fomos... - Hesitou o Nicolau - fomos... ver as meninas...
- Foram ver as meninas!? Muito bem! Sabem quem são aquelas meninas? O que fazem?
- Sim, trabalham no Calema... são... são... trabalham no Calema... - embatucou o Gramaxo.
- É verdade. Trabalham. No Calema. Eu não posso aprovar o trabalho... que elas fazem no Calema. Mas continuam a ser pessoas. Como tu, ou tu, ou tu, ou eu, pessoas como nós! Merecem não só o nosso respeito como também a nossa solidariedade.
Que palavrão! O Padre Júlio começava a falar caro. Nós, em sentido!
- Aquelas meninas - continuou - são quase todas analfabetas.
- Analfabetas? - Estranhou o Alforreca.
- Analfabetas Manelinho, analfabetas! Se calhar é por isso que trabalham... no Calema, percebes?
- Não sabem nada? Nem ler nem escrever? - Perguntei.
- Algumas sabem assinar; 'fazem' o nome mal e porcamente e nada mais.
- Coitadas - Condoeu-se o Fanadinho.
- Pois é, Por isso, pensei num trabalho para vós. Tenho a certeza de que vai agradar-vos, rapazes!
- O que é? O que é?
- Vão dar aulas às meninas do Calema! Vão ensiná-las a ler e a escrever. Aqui no salão paroquial.
Entreolhámo-nos, algo confusos.
Nós, pingentes de 12 e 13 anos? Dar aulas a adultos?
Todavia, sempre eram as meninas do Calema!
- Já falei com elas. Eu acompanho-vos no início de cada aula e depois vocês continuam a tarefa. Dos vossos pais trato eu. Está bem?
A estupefação inicial havia passado e dera lugar a uma euforia ingénua tanto quanto maliciosa, mitigada por um sentimento de responsabilidade crescente à medida que a tarefa nos ía tomando conta da razão.

O Padre Júlio tinha em curso projectos sociais, também de alfabetização, e numa sociedade de mente aberta como aquela as meninas do Calema encaixavam ali perfeitamente, sem rebuços hipócritas nem levantamento de beatas histéricas.
Saímos dali de peito inchado, orgulhosos, agradecidos pela confiança que o Padre Júlio em nós havia depositado.


Pois foi um verão memorável!
As meninas do Calema não só eram alunas aplicadas como também eram grandes compinchas, com a meninice à flor da pele, ombro a ombro com a nossa própria, capazes de carinho e afectos fraternais, quando não mesmo maternais, que ainda hoje relembro com grande emoção.

Que grandes férias!

Coisa que nunca percebemos, e ainda hoje está por saber, era o que fazia ali o Padre Júlio, naquela noite...

3 comentários:

Apache disse...

Hummm... Dar aulas às meninas?! Será que ainda necessitam de professor?
Que será que fazia ali o Padre Júlio?... Confesso que também estou intrigado...

xavier ieri disse...

Provavelmente a campanha de alfabetização estava já em curso.

GTL disse...

O Padre Júlio estava a fazer o seu passeio pedonal que só por mero acaso compreendia uma paragem perto da janela.

;)

MDB