quarta-feira, agosto 09, 2006

RECANTOS DA MINHA MEMÓRIA - III

Depois da escola, era sagrado: Ir à fruta!
Ela era mangas, pitangas, goiabas, anonas, fruta-pinha, papaia, mamão, nochas, maboques, mirangolos...
Naquele dia haviamos combinado ir à fruta-pinha, uma espécie de anona, de casca mais rugosa e sabor intenso.
Sabiamos onde a encontrar.
Havia que subir o rio, pela margem já que era verão e o caudal, grosso, não permitia veleidades.
Mas, para pernas de 9 anos, isso não era problema.
Fui eu, o Chinvoco, o Massusse e o Piruleta.

Descalços, calções e tronco nú como impunha o supremo gozo da vida simples, das vidas simples. "Cuidado com as cobras!", era o medo maior!
Claro que os varanos faziam a sua aparição, mas aquele arremedo de jacaré "kandengue" não impressionava ninguém.
Fugia a quatro patas com dois berros e umas pedradas.
O calor era insuportável naquele dia.
Pela sombra das mulembas, lá fomos de ideia fisgada na fruta-pinha.
Nem os mirangolos nos detiveram e olhem que já os havia maduros.
A água bebia-se nos remansos do rio, ali onde ela parecia brotar da terra, límpida e fresca.
Já se avistavam as anoneiras.
O Chinvoco era o mais velho e mais experiente, "Ispera aqui, pá, qui vô vere". E foi.
Ficámos. Em silêncio.
Entretanto, fomos procurando as pedras mais indicadas à nobre tarefa da guerra da fruta-pinha. Cada um enfiou nos bolsos dos calções tantas quantas lá cabiam.
Fundamental era também um pau, um bom pau, verde, que não se partisse logo à primeira cacetada no chão.
"Pôra, pá, sêrá qui os gajo tão lá?" afligia-se o Massusse espreitando a chegada do Chinvoco.

"Os gajo tão lá, pá!".
E o Chinvoco traçou logo ali a táctica de assalto e controle do território.
"Tu vais no tambor".
O tambor era uma velha árvore tombada, oca do caruncho, peça fundamental na guerra que se avizinhava.
"Piruleta, tu ficas anqui e anqui que ninguém passa, pá!".
"Massusse, vais na borda do rio mas não passa pra cima. Pra cima é onde os gajo vão sair, pá!".
"Eu vou por anqui e quando grito todos avança!"
Com as missões definidas, cada um de nós avançou lenta e cuidadosamente.
Instalei-me no tambor, o pau a jeito, e esperei o grito do Chinvoco.

Ouvia-se a restolhada que os gajos faziam, os seus gritinhos, a sua chiadeira.
Pé-ante-pé, o Chinvoco aproximou-se.
Houve um silêncio súbito. Os gajos perceberam!
"ATACAAAAA!!!!" Era o Chinvoco no comando!
O tambor urrava, debaixo da malha de porrada que eu lhe afinfava.
Numa chinfrineira infernal, os paus batiam no chão e na folhagem com toda a força, a gritaria ombreava com o barulho da água em queda nos rochedos ali ao lado.
Os macacos, aos guinchos, fugiam em debandada geral.
Depois, os mais afoitos paravam, regressavam e, raios!, eram atiradores exímios!
Pedras, paus, fruta, tudo era utilizado como munição.
Mas nós estávamos precavidos: Os bolsos cheios de pedras eram paióis a debitar munições e a pedrada fervia em direcção à macacada.
O toque final, que os levava para lá do rio, era uma correria, todos em conjunto, como se de um só corpo se tratasse, de braços erguidos armados de varapaus, e uma gritaria medonha qual dragão doido , furibundo, ali parido do nada para assombrar as pobres criaturas parentais.

Depois era a partilha da vitória, uma redundância empolada, uma recreação do vivido, tudo numa algaraviada de risos e cacofonias, de encenações miméticas, numa comunhão de vida e vivência.

Liberto o pomar, havia que tomar conta do reino.
Para não haver dúvidas, cada um ficava com a sua "despensa" de fruta-pinha.
Depois, era comer até mais não.

Que bem sabia uma fruta assim conquistada!

10 comentários:

GTL disse...

recantos de uma memória feliz, que bem que sabe ;)

MDB

xavier ieri disse...

Olá GTL (Gente Tão Linda)!

xavier ieri disse...

Olá Bulaxita,
Os recantos da memória dão belíssimas curtas metragens, por vezes.
No discuro directo ou no indirecto, na 1ª ou na 3ª pessoas.
O certo é que a realidade bate a imaginação aos pontos. De longe!

xavier ieri disse...

O que é que não percebeste?

Apache disse...

Esta "guerra" com a macacada fez-melembrar as guerras de carnaval de outros tempos e com outros macacos.

DarkMorgana disse...

Mais uma memória feliz!
Moçambique?

Já agora, qual era o seu nome?

xavier ieri disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
xavier ieri disse...

Angola, Munhino, grandes fazendas (herdades), também conhecido por "118", na estrada que liga Moçâmedes (actual Namibe) a Sá da Bandeira (actual Lubango), antes de chegar a Vila Arriaga.

O nome era o actual, mas não era xavier.

Cleopatra disse...

Temos códigos temos. E estes aqui têm cá cada um!

Mas vocês "miúdos" t/b Têm. Ora essa! Bué e tal coiso e tal pois assim uma cena...
Ora Bulaxa!!!

xavier ieri disse...

Ah! Ah! Ah! Ah!
(som de riso saudável)

Não são códigos Bulaxita, mas apenas átomos de tempo-espaço partilhados, que sofrem um fenómeno de agregação espontânea pelo reconhecimento e partilha da mesma estrutura atómica das vivências.
(acho que acabei de não ajudar nada...)