A peixaria do Zé Maria ficava mesmo em frente.
Chamavam-lhe peixaria, mas na verdade era uma fabriqueta de transformação e exportação de marisco e pescado variado.
Tinha um cais próprio, onde atracavam as traineiras e que nos servia de parque infantil, piscina, reino dos piratas, fortaleza, eu sei lá...
O Zé Maria era um porreiraço, muito amigo do meu pai, e de quando em vez lá vinha uma santola ou mesmo uma lagosta acabadinha de cozer, para a miudagem.
O cais ficava na zona da baía, águas calmas, perturbadas apenas pela passagem dos navios, das lanchas ou das traineiras.
Um bote ou uma chata não tinham segredos para nós.
Qualquer um de nós gingava uma chata com a destreza de um autêntico marinheiro.
Sabiamos fazer um nó de porco para a amarração e até mesmo um lais-de-guia, nó nada fácil de alcançar na perfeição.
Mas as brincadeiras com os barquitos alheios não preenchia já a nossa imaginação.
Verdadeiros piratas têm verdadeiros navios-pirata sob o seu domínio!
Verdadeiros piratas têm o seu próprio "navio".
Sentámo-nos em discussão.
A questão era: Onde desencantar um "navio" pirata?
Dos bolsos e dos mealheiros sairam as moeditas, mas todas juntas não chegavam para três braças de cabo, quanto mais para um botezito, mesmo roto...
- E se construíssemos um "navio"?
O Alexandre saltou como se tivesse uma mola tensa debaixo do traseiro!
- É isso!!! É isso!!! Vamos fazer um barco!!!
- Um navio, pá, diz-se um navio - insistiu o Nicolau - os piratas não têm barcos, têm navios, já viste se tivessem barcos ninguém os respeitava, por isso é navi...
- Pôrra! Tá bem, tá bem... vamos fazer um navio!
- E como, com quê?
Olhámos ali para o lado e a pilha de caixas de madeira riu-se para nós.
Levantámo-nos e cercámos o monte de caixas, olhando-as pela primeira vez!
Ora, acontece que o Zé Maria exportava o seu pescado em caixas de madeira, caixas essas que eram montadas ali na carpintaria da fabriqueta.
A amizade entre o Zé Maria e o meu pai valeu-me a incumbência da nobre tarefa de tentar reverter para a nossa causa uma esperada nega no pedido de utilização da madeira das caixas. Da madeira nova, evidentemente.
Mas o Zé Maria era uma alma única, certamente tivera uma infância feliz e creio ter vislumbrado uma enorme pena por ter crescido e não poder agora acompanhar-nos na criação do navio pirata, quando me respondeu:
- Um navio pirata!? Ah ah ah ah!! Pago pra ver!!! Que grande idéia! Ok, rapaziada. Vão ter com o Muxico e ele que vos dê as tábuas e os pregos e o que for preciso. Quero ver esse navio! Ah ah ah ah...
Do Muxico obtivemos não só os materiais, as ferramentas, como também os rudimentos da fabricação da coisa.
Era preciso uma quilha, fazer um cavername e depois recobrir tudo com as tábuas.
Utilizamos os fundos do quintal, uma zona reservada, pois não queríamos interferências de outras engenharias.
Aquilo foi coisa para uma semana.
Uma semana febril de corta e prega e arranca e torna a pregar e torna a cortar," é assim", "não, não, é assado", "segura aqui", "vai agora! Força!"...
A coisa começou a tomar forma e já parecia um botezito, de fundo achatado.
Mas não flutuava ainda. Era preciso calafetá-lo e impermeabilizá-lo.
Da necessidade ao Macué foi um passo.
O Macué era o encarregado da manutenção das traineiras e foi ele que nos deu uma lata de pez e um rolo de estopa de linho.
O know how tinhamos nós, pelas horas de obervação dos artífices na calafetação das embarcações.
Vá de calafetar.
O trabalho ficou pronto quando o pez se acabou, metade dele agarrado às nossas pernas, aos calções, ao cabelo (tramado tirar aquilo do cabelo, "agora só com azeite", dizia a minha mãe tentando perceber onde terminava o meu cabelo preto retinto e começava o pez da mesma cor).
Faltava apenas o toque final: Uma pintura. Um "navio" de piratas que se preze é pintado a preceito.
Na secção das tintas o Mané convenceu-nos de que aquela tinta de cor grená era a melhor.
Torcemos um pouco o nariz... grená... mas era a melhor! e um pirata deve ter o melhor.
O barquito lá ficou todo pintado de grená. Bonito o danado!
Um velho remo foi transformado num belo mastro.
Já os sacos que serviam ao transporte do milho forneceram o pano para a vela latina, toda cosidinha à mão com agulha albardeira.
Comprámos uma pequena bandeira nacional, para a içar no mastro do "navio".
O toque final era a bandeira dos piratas. Foi desenhada e pintada a preceito, caveira e ossos cruzados, brancos sobre fundo negro. Um espanto!
Para evitar aflições e vexamos inúteis, no silêncio de uma bela madrugada de noite mal dormida pela espera, suámos as estopinhas mas metemos o malvado à água.
Flutuava.
Direitinho!
Aí pelas 9 da manhã estava eu, o Nicolau e o Alexandre a navegar a pleno pano, a não mais de 200 metros do cais.
O Fanadinho, o Alforreca, o Tito, o Gramaxo, a Lolita e a Inês (sim, sim, havia meninas, pois então!) estavam no cais, à espera de vez. Sim, porque o "navio" era de calado pequeno e mais de três piratas a bordo... afundavam-no!
Nisto, vem de lá o Zé Maria pelo cais, a gesticular, a gesticular...
A rapaziada à sua volta pulava, gritava, apontava... e nós espantados!
Não conseguíamos ouvir nada do que gritavam.
O Zé Maria gesticulava, fazendo-nos sinal para atracar, para regressar ao cais.
A bombordo, passou uma lancha e o mestre apitou, veio à amurada e também nos gritou algo que se perdeu no barulho do motor, apontando o nosso "veleiro".
Uma inquiteção tomou conta de nós.
O Zé Maria, no cais, continuava a chamar-nos a terra, ao cais.
- Nicolau! - era o Nicolau que ía ao leme - mete ao cais que alguma coisa não está bem...
- Fogo pá! O que será?!
A sensação de felicidade de navegar, de flutuar naquela casca de noz, feita pelas nossas mãos, deu lugar à apreensão.
Metemos direitinho ao cais, o "navio" a todo o pano, impecável, rasgando a água azul com aquela sua cor grená, orgulhosa, presente, personalizada.
À medida que nos aproximávamos a malta fazia uma algazarra tal que não conseguiamos ouvir o Zé Maria.
- Encosta, encosta! Olha o cabo!
Passado o cabo, preso o "navio", subimos ao cais pelas escaditas carcomidas e demos de caras com o Zé Maria.
- Ah! meus malandros...
- O que foi? O que foi? Sô Zé Maria, nós não...
- Ah! Cambada de malandros!!! Ih ih ih ih - Ria-se ele e nós sem percebermos patavina...
- Oh meus malandros, querem ir todos presos?!
- Mas nós não fizemos nada, nós...
- Então vocês não sabem que a PIDE anda por aí? que está em todo o lado?
- PIDE?!
- Chiiuu... shshsh... baixinho... a PIDE , sim.
- Mas nós não fizemos nada...
- Ah ah ah ah ih ihih - ria-se ele entre complacente e zangado e nós sem nada perceber.
- Olhem, para a vossa bandeira. Olhem!
- O que é que tem?
- A bandeira nacional, rapazes, a bandeira nacional!
- É novinha em folha, foi o Nicolau que a foi comprar e tudo...
- Pois é... mas está de pernas para o ar!!! De pernas para o ar, caraças!!!
- (!!!)
- Se a PIDE vê a bandeira de pernas para o ar vamos todos presos! E fecham-me a peixaria, rapazes!
(Este pequeno conto dedico-o ao meu amigo Alexandre, onde quer que ele se encontre; amigo que eu, desde então, não mais voltei a ver)
3 comentários:
Nem tudo era mau nesse tempo da "outra senhora", o respeito pelos símbolos nacionais, por exemplo, foi coisa que se perdeu.
Xavier: até eu que também tive uma infância feliz tenho uma enorme pena de não vos ter podido acompanhar na criação do navio pirata, quanto mais o Zé Maria que estava lá...
Bem vinda a bordo, Morgana.
Tem sido sentida a falta...
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