É Domingo e o sol já vai alto.
No Verão é importante começar cedo.
Procuro a fisga, que serve apenas para apontar aos cacos de resina e nunca aos pássaros.
Tenho inúmeras coisas para fazer.
Meto pelo carreiro em direcção ao vale, atravesso o riacho.
Cantam rouxinóis e cigarras.
Um gaio espantado grasna, arrastando no coro um melro sonolento.
Atravesso a seara de centeio, com cuidado, "não se pisa o pão".
Os caminhos das cabras levam-me ao sopé da serra.
É hora de subir.
Os pés, empoeirados nas sandálias pequenitas, ameaçam cansaço e os calções deixam as pernas à mostra, um petisco para os tojos e os carrascos.
Ali está ele: O penedo amarelo!
Subo a penedia, a pulso, passo a passo, pedra a pedra.
Agarro-me ao alecrim e à esteva.
Procuro a velha fenda que me há-de levar aos ninhos das gralhas do penedo amarelo.
Num derradeiro esforço, ergo-me e espreito.
Dois enormes ninhos, quais feixes de lenha, mesmo à minha frente.
Os pais não estão. Estão os filhotes.
Ergo-me um pouco mais e fico ali a contemplar aqueles quatro seres, feios como um raio que os parta!
Mas cuja contemplação me fascina e me delicia.
É tudo o que desejo: Visitá-los de vez em quando e ver a sua evolução. Ver como ganham penas, como se vestem para o baile do primeiro voo.
Um belo dia chego lá e... são apenas memória.
Já são livres!
O grito da gralha devolve-me à realidade.
Ala, que se faz tarde!
Desço a penedia e percorro os carreiros do monte, que me conhecem muito bem.
Vou agora pelos cortiços, os que enxamearam.
Fico ali, perdido nas idas e nas vindas das abelhas, as que se apressam a sair e as que se afadigam a entrar, com as pernadas cheias de polen.
O odor de uma colmeia é absolutamente único: Cheira a óleos, a mel, a terra, cheira aos frutos doces, a todos os frutos da terra.
O sol subiu bastante, o calor aperta.
É altura de me refrescar.
Dirijo-me para o rio. Na verdade é um ribeiro, mas de água sempre fresca e com "nascentes" onde as mulheres enchem as cantaras que depois levam para a ceifa.
Por entre caniços e salgueiros, abro caminho até à água.
Meto lá os pés, com sandálias e tudo. Oh, como eles agradecem.
Caminhando pelo leito do ribeiro, onde ele é baixo, pela margem onde ele afunda, procuro a pequena represa, ao fundo do milharal do Ti' Zé Barraca.
Subo ao milharal, enfio-me pelas regueiras do milho, que faz dois ou três de mim, e lá à frente viro à direita.
Sei que é por ali. Procuro.
Ali está!
O mais belo abrunheiro da zona.
Carregadinho de abrunhos maduros.
Levanto a camisa e levo aos dentes uma das pontas, deixando uma espécie de bolsa suspensa.
Depois é só enchê-la de abrunhos sumarentos.
Volto ao ribeiro e coloco os abrunhos dentro da água fresca.
Dispo-me e enfio-me dentro de água também.
E ali fico.
Primeiro visitam-se os amigos.
A loca grande, dos barbos, está cheia.
Sei onde moram as rãs e deixo-as em paz para que me presenteiem com o seu coaxar pachorrento.
Mergulho, dou umas braçadas e de quando em vez vão uns abrunhos.
Umas braçadas, uma barrigada de água fresca e uns abrunhos!
As rãs coaxam e há um passarito em doce chilreio, a coberto da sombra verde e fresca.
Que bela é a vida!
10 comentários:
Parece ter uma visão do Alentejo profundo...
As varas de porcos, ninhos de cucu, vento suão, calor avassalador, planicei dourada, estradas poeirentas, lobos, corvos..
Bom blog
Abraço
Conversa noutro Blog :
...."O dito fio condutor determina as inerentes inevitabilidades e por isso as paixões, como o resto, são todas iguais."
Não é verdade.
Nem as paixões são iguais ao resto nem as paixões são todas iguais.
Não são não.
porque as outras, as que não são iguais não foram paixões...
E o ciclo quer dizer apenas que pode haver ou não uma mudança... quem sabe uma continuação... quem sabe,..o fim do ciclo...........
Tudo bem!
Tal como eu disse: "Maneiras de ver"...
Não há verdade, nem sequer e apenas verdades...
Talvez apenas maneiras de ver...
"Que bela é a vida!"
Que bela é a infância!
Maneiras de sentir, também. Sem dúvida.
Para quem teve uma bela infância, que bela é a infância.
Eu, particularmente, valorizo muito a natureza e o contacto, permanente, com a natureza.
Hoje como na minha infância.
Não sou bicho da urbe.
Sou bicho do mato mesmo!
Olá Bulaxita,
e porque não?
Tenho cá pra mim que é preciso saber que é caca quando se pisa caca.
Mas não é preciso saber que é amor quando se sente amor.
Basta sentir... o que se sente. Seja lá o que for.
Se quisermos rotular, muito bem.
Mas não é absolutamente necessário.
Agora, quando queremos falar dele, do amor, temos de permeio as palavras.
E é aqui, nas palavras, que começamos a tropeçar...
Ou são de mais... ou são de menos...
Raramente na dose certa.
Talvez por isso o amor sem palavras é tão belo (amor sem palavras entenda-se amor que não carece de palavras, em que as palavras estão a mais, por desnecessárias...)
Essa característica percebe-se na sua escrita. Também gosto do contacto com a natureza, mas tem de haver praia.
Quanto ao resto, sou bicho urbano... da confusão, das ruas cheias de gente, das luzes da grande cidade.
Sabe o que estes seus últimos "post´s" me fazem lembrar? Miguel Torga, Novos Contos da Montanha!
É verdade, Apache.
A vantagem das leituras certas nas alturas certas... felizmente.
Sem nos apercebermos, algo se vai sedimentando...
Tenho imensa pena de não ter muitas destas memórias de infância...
Sempre vivi na cidade.
Gozar assim a Natureza, só mesmo nas férias e fins de semana...
Mas sabe-me muito bem beber estas suas memórias...com uma pedra de gelo...
:)
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