quinta-feira, junho 01, 2006

ESCUTA ZÉ NINGUÉM

"Escuta, Zé Ninguém! Chamam-te “Zé Ninguém!” “Homem Comum” e, ao que dizem, começou a tua era, a “Era do Homem Comum”. Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado.
Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que to digo. A verdade é que todo o médico, sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar no governo da Terra. O futuro da raça humana depende, à partir de agora, da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És “livre” apenas num sentido: livre da educação que te permitiria conduzires a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.
Nunca te ouvi queixar: “Vocês promovem-me a futuro senhor de mim próprio e do meu mundo, mas não me dizem como fazê-lo e não me apontam erros no que penso e faço”.
Deixas que os homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes aos homens que detêm o poder, quando não o conferes a importantes mal intencionados, mais poder ainda para te representarem. E só demasiado tarde reconheces que te enganaram uma vez mais.
Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, sem opção, sem voto, sem aquilo que fiz de ti “membro do povo”. Nu como um recém-nascido ou um general em cuecas. Ouvi então os teus prantos e lamúrias, ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas. Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé Ninguém, porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te:
És o “homem médio”, o “homem comum”. Repara bem no significado destas palavras: “médio” e “comum”.
Não fujas. Tem ânimo e contempla-te. “Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?” Leio esta pergunta nos teus olhos-amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, directo em vez de cauteloso, amando às claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém, Dizes: “Quem sou eu para ter opinião própria, para decidir da minha própria vida e ter o mundo por meu?” E tens razão: Quem és tu para reclamar direitos sobre a tua vida? Deixa-me dizer-te.
Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande homem foi outrora um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse, aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais, mas não de si próprio. Que admira as idéias que não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar.(…)”.



"Escuta, Zé Ninguém!" não é um documento científico, mas humano.
Foi escrito por Wilhelm Reich no Verão de 1946, para os arquivos do Instituto Orgone, sem que se pensasse, então, em publicá-lo. Resultou da luta interior de um cientista e médico que, durante décadas, passou pela experiência, a princípio ingênua, depois cheia de espanto e, finalmente, de horror, do que o Zé Ninguém, o homem comum, é capaz de fazer de si próprio, de como sofre e se revolta, das honras que tributa aos seus inimigos e do modo como assassina os seus amigos. Sempre que chega ao poder como “representante do povo”, aplica-o mal e transformado em qualquer coisa ainda mais cruel do que o sadismo que outrora suportava por parte dos elementos das classes anteriormente dominantes.


Wilhelm Reich nasceu a 24 de Março de 1897 nos confins orientais da Galícia, então na posse do Império Austro-Húngaro. Acusado de charlatanismo, perseguido pelos nazistas e pelos “democratas” norte-americanos, expulso do círculo de psicanalistas e do Partido Comunista. Foram inúmeros os problemas que teve com todos os tipos de poderes instituídos.
Isso graças ao vigor de seu pensamento e de sua independência frente às instituições repressivas que tanto criticou.
Não reconheceu limites nas ciências, da psicologia à física e à biologia... e cada campo recebeu valiosíssimas contribuições, que até hoje (até mesmo nas academias) não são reconhecidas, sendo mesmo boicotadas.

É o preço do livre pensamento.
O contraponto é a "normalização" da mediocridade.
Às armas!!!!
Às armas da competência, da decência, do trabalho, dos valores!
Às armas!!!!!
Às armas da Razão!
Contra os canhões da incompetência, da corrupção, da demagogia, da filhadaputice, da mediocridade, da inanidade, marchar, marchar!!!



11 comentários:

Elsa Gonçalves disse...

Há uns anos...era o Barroso, nosso primeiro, lançaram uma mentira do 1º de Abril. Na altura, ainda via televisão, embora já muito de vez em quando e a mentira foi para a rua, e a reportagem passou para o telejornal. A notícia era bombástica, tinham decidido por decreto mudar o hino nacional. Dos entrevistados, uns acharam verosimil, outros, perceberam a marosca.
É que deviam mesmo tê-lo mudado, Xavier. Para que nem como metáfora pudesse ser usado. O nosso hino vem para aí de 1890, dos tempos da monarquia, aproveitado depois pelos republicanos incompetentes que geriram o país durante 16 anos. Aquilo nem Weimar foi!
Devíamos mesmo mudar o hino. Mas já não temos o Barroso, e ainda bem, e para o próximo dia das mentiras ainda faltam muitas dias.
E viva o Abril, em Junho!
maria

Apache disse...

Contra as armas de desconstrução maciça de alguns, oponha-se uma arma de construção maciça, o pensamento pelas nossas próprias cabeças!
Às armas!!!

Cleopatra disse...

(...)que, durante décadas, passou pela experiência, a princípio ingênua, depois cheia de espanto e, finalmente, de horror, do que o Zé Ninguém, o homem comum, é capaz de fazer de si próprio, de como sofre e se revolta, das honras que tributa aos seus inimigos e do modo como assassina os seus amigos. Sempre que chega ao poder como “representante do povo”, aplica-o mal e transformado em qualquer coisa ainda mais cruel do que o sadismo que outrora suportava por parte dos elementos das classes anteriormente dominantes.(...)

Tantos de nós que também sentem isto!

xavier ieri disse...

Olá, ó do penacho,
Tens toda a razão Apache, esse é seguramente um 'combate' que se impõe: combater a desconstrução estéril.
Como dizia o poeta: "Não sei por onde vou, sei que não vou por aí!"
Quantas vezes, mais do que saber o que queremos importante seria sabermos o que devemos rejeitar.
Abraço.

Olá Cleo,
Palavras actuais, não é?
É um discurso profundo. O Reich faz uma espécie de mineração nas profundezas da natureza humana.
bj

Apache disse...

Escrevi há poucos dias, esta frase do José Régio, no blog da Morgana!

Está-me a apetecer repetir aqui uma frase que deixei há uns minutos noutro... sítio...

Viva a Revolução Francesa!!!

(Esta frase, esteve quase a ir parar à "postagem" anterior, mas ficava lá mal, de tão curta e grossa) :):)
Bom Domingo para todos!

Cleopatra disse...

Olá xavieri... Que tal... vamos escrever o II Volume??

Convide lá o Moicano!

Uma escrita daquelas não pode ficar só pela Net.
Não concorda???

xavier ieri disse...

Absolutamente.
O moicano é um talento.
Mas creio que terá já sido estabelecido o dito contacto.

Cleopatra disse...

Mas o convite é para si também!!!!!

xavier ieri disse...

Ó balh-me Deuz...
Eue??!

Que honra!

Tou baralhado...
Depois de tanto disparate por aqui vertido...

xavier ieri disse...

Por aqui vertido, isto é, que por aqui tenho vertido...

DarkMorgana disse...

Nunca tinha lido este texto que, como já foi referido, é actual.
Este Zé-Ninguém é parecido com o da "Carta a um adolescente", que postei há pouco tempo e que afinal é uma carta a todos os que não pegam nas armas para combater o "Auto-Embalsemamento em Vida"...

Atrevo-me a transcrever para aqui umas passagens:

"Nem olhes com desprezo qualquer "Zé-Ninguém"
não penses que orientou a sua vida muito mal...
também ele, como tu, sonhou um dia ser "Alguém"...
também ele, como todos, se contentou em ser igual...

(...)Com o tempo habituas-te e nem te vais aperceber
que muito simplesmente, já deixaste de existir."

Todos seremos Zés-Ninguém enquanto deixarmos pôr em causa o nosso valor enquanto seres humanos e profissionais, e enquanto assistirmos impávidos e serenos à generalização de um padrão de mediocridade que não é o nosso, independentemente de sermos juízes, professores ou qualquer outra profissão.

Que armas?