segunda-feira, janeiro 02, 2006

(SEM TÍTULO)

Contrariamente ao que certos ministros pensam ou ignoram, e a maioria da população julga, estive e continuo ao trabalho, no tribunal, embora o período seja de "férias judiciais".
- Sr. dr. está lá fora uma pessoa que deseja falar-lhe. É por causa de um processo. É o autor.
- Pois, já sabe que não dialogo com as partes sobre os processos. Qual é o número?
- ...
- Ora, deixe-me ver. Bom, segundo o meu plano [de gestão por objectivos], vai ser despachado na 3ª ou 4ª semana deste mês. Depende dos urgentes...
-Posso dizer-lhe isso?
-Diga.
(...)
-Sr. dr., dá-me licença? é só para lhe dizer que o senhor ficou tão contente...! Coitado.
-Ainda bem.

Nestas alturas é maior a consciência de que na outra ponta do novelo intrincado que é o processo há alguém com a "vida", em maior ou menor grau, suspensa da minha decisão.

Isso dá-me ânimo para continuar.

Aliás, neste momento é o único ânimo.

E porque este blog é também um espaço terapêutico, e não tenho "tempo" para ir ao dr. Salvador da Cuca, lá vai desabafo:

a) Sou juiz da jurisdição administrativa (juiz de direito, portanto, e não juiz administrativo como por vezes por aí se diz, que, aliás, é coisa que não existe);

b) Após o CEJ, terminei o estágio em 31/12 de 2003 (e três, sim);

c) Em 1 de Janeiro de 2004 fui nomeado juiz em efectividade de funções;

d) Hoje são 2 de Janeiro de 2006;

e) E o meu vencimento é ainda o de um juiz estagiário!

Em 2002, aquando da realização dos exames ao CEJ ninguém poderia imaginar tal situação.

Naquela altura, contas feitas, assumiu-se o risco de temporariamente se ter vencimento bastante inferior ao da situação anterior.

O que ninguém poderia prever foi o que de seguida se passou: Sucessivas mudanças das regras do jogo, com o jogo a decorrer.

Evidentemente que o meu (e de mais 82 juízes) pequeno drama não se compara ao drama que o país atravessa.

Não! Não estou a falar da crise. Essa será ultrapassável.

Falo da incompetência, da corrupção, da mentira, do clientelismo, da subversão, do autoritarismo, da derrogação dos princípios basilares da democracia.

No entanto, o pequeno drama destes 83 juízes é, para cada um deles, um grande drama.

Como não podem exercer qualquer outra actividade remunerada, apenas contam e podem contar com o seu vencimento. De estagiário.

As funções de juiz são extremamente exigentes (e sublinho extremamente).

Os juízes da jurisdição administrativa julgam e presidem a tribunais colectivos desde o primeiro dia e julgam todo o tipo de causas pendentes nestes tribunais, que, aliás, são tribunais de círculo.

Pelas mãos destes juízes passa todo o contencioso administrativo e o tributário.

As Otas e os TGV's hão-de gerar contencioso e, sim, também esse nos cairá nas mãos.

São funções de extrema exigência e de extrema responsabilidade.

É verdadeiramente muito pesado.

Todavia, se um trolha (com todo o respeito) trabalhar tantas horas por dia como eu trabalho (cerca de 12/13 horas de segunda a quinta e 8 horas à sexta), terá um vencimento mensal muito superior ao meu (ainda bem para ele).

Já não falo de vexame, de dignidade, de estatuto, eu sei lá!

Falo apenas daquilo com que se compram os melões.

No meu caso pessoal, vou no terceiro empréstimo, ou melhor, é a terceira vez que vou ao banco pedir dinheiro emprestado.

Para trocar de carro? Um televisor? Ir de férias? ...?

Não! Não! Não!

Apenas para viver o dia a dia: supermercado, pronto-a-vestir, talho, escola, sapataria...

(livros? Jornais? Revistas? Teatro? Cinema? Opera? Eventos culturais a mais de 4,99€ por cabeça? Não, muito obrigado. Como se sabe, eu não consumo artigos, produtos e serviços de luxo).

Mas, como não posso continuamente endividar-me mais e mais, tive uma idéia fabulosa: Tenho um apartamento e vou vendê-lo. Talvez com as sobras das mais-valias, consiga sobreviver mais uns meses.

É verdade! Juro que é verdade!

Vou vender o apartamento para poder viver.

E tudo isto porquê?

Porque sou cobarde!

Não fôra eu cobarde e mandava tudo isto à merda!

Mas tenho sempre uma boa desculpa: "os miúdos..."; " "blá, blá blá..."; "nhã, nhã, nhã...".

Neste aspecto, acho que vou hibernar; Enrolado na minha cobardia.

No mais, valem-me as pessoas do outro lado do novelo...

E este blog... ou seja, vossemecês.

4 comentários:

Vítor Sequinho dos Santos disse...

A actual situação dos Juízes de Direito que estão na situação do Colega é, de facto, revoltante. Custa a crer como se chegou a este ponto num Estado de Direito Democrático (que, quero continuar a acreditar, Portugal é), noção que pressupõe, entre outras coisas, o primado do Direito, com regras estáveis e igualmente vinculativas do Estado e dos particulares.
Sei que não lhe vale grande coisa, mas olhe, tem a minha solidariedade!
Atrás dos tempos, tempos vêem. Um dia, a Justiça e o bom senso hão-de prevalecer.

Sónia Sousa Pereira disse...

Caro Xavier,

Além de votos de muito sucesso, saúde, felicidade e prosperidade, desejo-lhe o desfecho desta malfadada história que tão bem ilustra o respeito que a classe política tem vindo a demonstrar pelos seus Magistrados.

Solidária #2!

S.

Elsa Gonçalves disse...

Um dia, acredito, os homens e as mulheres que habitarem este planeta terão uma noção diferente do conceito de justiça. Mas acredito também, que só frutifica e floresce a semente que se deita à terra. É assim desde o paleolitico, ao que julgamos saber.Mesmo que as vomitemos, cuspamos, temos que as lá deitar.
Parabéns, Meretissimo pela coragem de falar de si...assim.
Maria

AC disse...

Mais do que para viver, é necessária muita coragem para se ser juíz em Portugal. Os governantes e particularmente o actual governo, têm demonstrado o maior desprezo por Vós. E na verdade, nenhum país será digno do nome se a sua justiça não for efectivamente um pilar que sustente a legalidade. Os meus respeitos pela sua coragem.
http://desgovernos.blogs.sapo.pt/